terça-feira, 30 de outubro de 2012

meia noite e um bocado.


Por lá já deve ser 4:21 da madrugada, aqui eu ainda continuo acordado – hoje meu medo é tão concreto que vejo a vida como uma simples epiderme cobrindo nossos traumas. Este é meu último gole antes de ir à casa, e quando se sabe a última dose pra voltar, o álcool simplesmente é um sonífero tardio. Em mim não houve resultado. Antes de levantar, tirei uma casca dessa camada grossa que não inventamos palavra para descrever e tentei seguir. Ser adulto para mim é algo tão infantil que aproveito o privilégio de ser. Agora eu tenho esta válvula: ser adulto. Beber, sair com os amigos, não ter horário em voltar, me proteger... O ultimo gole desce quente, talvez tenha propositalmente demorado nas doses, mas levo a punição do copo quente. E quando este líquido quente atravessa minha garganta, fecho os olhos e nada mais sou do que memória. Herdei de minha família materna a mania de rezar antes de dormir, mas rezo fazendo regressões que finalizam em uma ordem cronológica no futuro; estarei dormindo as 4:21?.



quarta-feira, 26 de setembro de 2012


Sobre a mesa, fatiada, encontram-se algumas
                                              p a l a v r a s
que
talvez,
por não serem comestíveis, vão para o lixo.
Entre uma cadeira e outra, um homem magro
corta
a madeira com seu azul marítimo.
Entre os restos de comida e as frutas secas,
moscas buscam
                                                   repouso,
  enquanto o homem abre sobre o marrom uma
 pequena fotografia borrada entre o rosto fosco.
Com o papel manteiga,
tenta
delinear a memória em formas geométricas,
o que resulta em uma longa sequência de círculos
                         que terminam na borda do papel. 

o mais doloroso de tudo

o mais doloroso de tudo não foi, decerto, dizer adeus, pois não houve, doeu foi a palavra engolida. Tenho saudade de acordar pela madrugada e imaginar meu discurso de palavras bonitas e cheia de significados até  no outro dia descobrir que nada daquilo tem sentido. Daí eu me sinto um menino e busco justificativa para o que parece ser o tempo perdido. Se eu pudesse retornar no tempo, não voltaria, mas devolveria ao mundo uma parte.

o clima da região onde eu moro é insuportável, nunca há frio suficiente. Nas madrugadas que acordo, ligo ao máximo o ventilador para sentir frio, daí eu pego o mais quente dos edredons e a cama continua o mesmo calor infernal lá de antes. Tem coisas que faço, que a natureza faz antes por mim.

Mas se o terreno não tá adubado, eu não consigo plantar. Eu sigo esses planos não por comodismo, até porque exige um pouco de força das quais são complexas, mas pelo simples medo de não ser natural.

o mais doloroso de tudo não foi não ter dado certo, foi o percurso em que a água do rio seca, sem chegar no mar. que as palavras já não seguem o percurso natural.

sábado, 2 de junho de 2012


tanto verso perdido,
entre nós, há um nó, tantos versos perdemos

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Adim e o buraco na calçada.


Aquele coração formado pelas pedras na calçada, hoje era apenas um grande buraco, em que nos dias de chuva ele tentava se desviar.

É engraçado essa mania de dar nome às formas, significado às cores, razões às coisas, amor às pessoas… Quando Adim atravessou a rua, ainda molhada da chuva que ele nem viu cair, percebeu a grande sem-forma que existia onde antes havia o coração. Um morango, talvez, pensou. Mas o buraco era tão assimétrico e descontínuo que nem mesmo forma de buraco tinha, e Adim sentia a inexplicável necessidade de dar um nome aquela forma que hoje tava em seu caminho com a água suja da rua.

Começou por comparar com cabeças de dinossauros, comidas exóticas, bactérias… De tudo… Mas o buraco ali já não havia forma. Era um buraco, sem forma de buraco, que guardava resto de chuva. Se lhe dessem mais coragem em seu nascimento, ele mesmo se ajoelharia na calçada, e com um pouco de delicadeza e violência, começaria por retirar algumas das outras pedras ao lado do buraco, para dar algum sentido ao vazio do passeio.

Os primeiros pedestres olhariam com curiosidade, outros com desdém. O que aquele homem de tão boa aparência fazia ali ajoelhado na calçada molhada? Procurava algo que deixou cair na poça da chuva? Então era isso que Adim fazia? O que ali havia perdido? Um casal usando um guarda-chuva azul, do outro lado da rua, olharia com atenção para aquela cena. O corpo inclinado, agora já ensopado pela água parada que ele mexia, formavam um belo desenho na calçada.

Retiradas umas nove pedrinhas, com muito trabalho, Adim percebeu o fracasso de seu esforço. As pedras da calçada não seguiam uma lógica, e cada pedra retirada deixava ainda mais o buraco sem forma – e cheio d’água. Adim levantou-se, agora havia apenas um obstáculo na calçada. Contornou-o e seguiu.

Naquele dia, Adim se atrasou duas horas pro trabalho.

síndrome de Estocolmo


Ela está apaixonada por seu assassino.
Por debaixo dos pés da mesa, ela o vê; ele tem no corpo uma calça jeans, uma camisa branca e, em uma das mãos, uma pistola. Na outra, folheia um livro de capa amarela.
Sentado em frente ao som da televisão, ele ler distraidamente. Saindo dali, caberá à ele escrever sobre sua morte – assim como o homem do telejornal anuncia agora.
Contudo, ainda restará em seu corpo metade do que foi lido...

sábado, 21 de abril de 2012

onde encontrar a mansidão em um mar tão agitado?
                                 como encontrar mansidão em espaços
que só há imensidão?



ondas

segunda-feira, 9 de abril de 2012

acontecer

Quando estava saindo da Isla de la Toja, na Galiza, soube que há uma lenda em que se você faz um pedido ao atravessar a ponte para deixar a ilha, e se ficar sem respirar até chegar ao continente (o que de carro demora pouco menos de 60 segundos), seu desejo é realizado. Pouco fiel, mas muito encantado com a igreja e as vieiras da cidade, mentalizei e prendi minha respiração. Pedi pequeno, pois gosto de acreditar nessas lendas, no fundo, gosto que elas se tornem reais para mim. Gosto de acreditar no abstrato. Fiz um pedido que se cumprisse fácil, sem precisar do mundo. Pedi o outro lado da ponte. Pedi que o mundo rodasse. Pedi que não parasse de enxergar. Pedi 30 centavos. Pedi a comprovação da existência de Deus. Também pedi saúde, e essas coisas que gente de bom coração deseja. Pedi pequeno, fácil, porém misterioso. Começo a acreditar na ponte de la Toja, e espero até a próxima estação para meu pedido ser atendido. Não quero interferir no mundo, não posso pedir o e(x)terno.

o mendigo e a barriga

Para o adeus,

Era uma vez um mendigo. E como mendigo, não havia nada de especial na sua vida, além da fome, pobreza e solidão. O mendigo que eu falo, como tantos outros, habitava as ruas do centro de alguma cidade, e durante a noite lutava contra todos obstáculos em busca de um lugar quente para dormir.

O mendigo tinha fome. Sim. E mais do que isto, a sua fome era denunciada por sua barriga, que de minuto em minuto fazia ronc ronc para lembrar ao mendigo que estava vazia. Passaram muito tempo, e os dias do mendigo era sempre iguais. Enfrentava durante o dia a vida, e pela noite escutava as reclamações de sua barriga. Uma certa noite, o mendigo ouviu sua barriga dizer: Tenho fome. O mendigo achou que estava tendo alucinações, mas pela manhã ele percebeu que sua barriga havia mesmo aprendido a falar. A cada frase que escutava, a barriga do mendigo repetia, e não demorou muito para falar frases que duravam longo tempo.
O mendigo sentiu muita vergonha da sua barriga e procurou um local vazio da cidade onde pudesse ficar sem ninguém ouvir a sua barriga. Antes de dormir, a barriga deu vários conselhos ao mendigo e se desculpou por fazer ele sentir vergonha. Passaram toda noite conversando, falaram sobre a infância, sobre sonhos… até piadas contaram. Apesar de estarem muito famintos, a conversa parece que vez o mendigo, e a barriga, esquecerem que estavam vazios. A barriga prometeu ficar em silêncio sempre que o mendigo fosse ao centro procurar alguma comida. Em algumas semanas, a barriga e o mendigo eram os melhores amigos, sempre conversavam antes de dormir,o mendigo ensinava novas palavras pra barriga, e contavam suas dores, suas vontades… até mesmo piadas contavam. Foi em uma dessas conversas noturnas, depois de muito tempo, que a barriga, que tinha se tornado muito sábia, falou ao mendigo que uma barriga que fala não é comum. O mendigo concordou, mas não entendeu onde a barriga queria chegar com tal conversa. Então a barriga explicou que eles poderiam fazer espetáculos na rua, sim, a barriga até sabia algumas piadas, assim com o dinheiro o mendigo poderia alimentar-se.

Na manhã seguinte, o mendigo seguiu para uma das ruas mais movimentadas do centro, onde costumava pedir esmola, e anunciou para todos os pedestres a sua barriga falante. Logo chamou atenção de todos, que acharam incrível uma barriga que falava e contava piada, como é de se esperar. Foi um dia incrível. Na noite, o mendigo comprou várias comidas e riram um bocado, a barriga estava cansada do dia agitado e adormeceu primeiro que o mendigo. Ele tava feliz, demorou um pouco até dormir, pensando no espetáculo do dia seguinte.Passaram-se os dias, e a barriga e o mendigo tornaram-se famosos pela cidade, todos queriam ver de perto a barriga falante. Até foram convidado pela televisão para um programa de humor onde a barriga contaria piadas.
O mendigo ganhou uma casa, tinha dinheiro para se alimentar, enfim, era feliz.
Passaram-se os dias, saciou a fome.
E nunca mais sua barriga falou.